O clarinete, com seu timbre rico e aveludado, é um dos instrumentos de sopro mais versáteis e expressivos da orquestra moderna. Desde o jazz e a música de câmara até as grandes sinfonias e trilhas sonoras de filmes, sua voz única se destaca. Mas como esse instrumento, que hoje conhecemos e amamos, surgiu? A história do clarinete é uma jornada fascinante que remonta a séculos, começando com instrumentos simples e evoluindo através da engenhosidade de artesãos e músicos.
As Raízes Antigas: Instrumentos de Palheta Simples
Embora o clarinete moderno tenha surgido no início do século XVIII, suas raízes estão em instrumentos muito mais antigos que utilizavam o princípio da palheta simples. A palheta, uma pequena e fina tira de material (originalmente cana, agora também sintético) que vibra contra um bocal ou tubo, é o coração do som do clarinete.
Há milênios, instrumentos de palheta simples eram comuns em diversas culturas. No Antigo Egito, o memet era um instrumento de tubo duplo feito de cana com palhetas simples. O aulos grego e o tibia romano, embora mais frequentemente associados à palheta dupla (como a do oboé), também tinham variantes de palheta simples. Estes instrumentos antigos eram rudimentares, com poucos buracos para os dedos e um alcance melódico limitado, mas estabeleceram a base do mecanismo de produção sonora.
Na Europa medieval e renascentista, o princípio da palheta simples persistiu em instrumentos como a charamela e o córmulo, embora o foco estivesse mais nos instrumentos de palheta dupla (como a cromorna e o shawm). No entanto, o precursor direto do clarinete, o instrumento que continha a “semente” para o seu desenvolvimento, é o chalumeau.
O Chalumeau: O Berço do Clarinete
O chalumeau (pronuncia-se “chalumô”) foi um instrumento popular na Europa, particularmente na França e Alemanha, a partir do final do século XVII. Feito de madeira (geralmente buxo), ele era essencialmente um tubo cilíndrico com cerca de oito orifícios para os dedos e uma palheta simples, firmemente amarrada a um bocal de madeira.
Seu nome, derivado do latim calamus (cana), era genérico e aplicado a vários instrumentos de palheta ou flautas. O chalumeau era pequeno, com um som suave e doce – daí o nome de seu registro mais baixo, que hoje chamamos de registro de chalumeau no clarinete. O seu principal problema era o alcance limitado, geralmente pouco mais de uma oitava.
A grande inovação que transformaria o chalumeau no clarinete foi a adição de uma chave que permitisse ao instrumento “saltar” para a oitava superior, ou seja, estender seu alcance de forma significativa.
A Invenção do Clarinete por Johann Christoph Denner
O crédito pela invenção do clarinete é quase universalmente dado a Johann Christoph Denner (1655–1707), um renomado fabricante de instrumentos musicais de Nuremberga, Alemanha. Por volta de 1700, Denner e, posteriormente, seu filho Jacob (1681–1735) aprimoraram o chalumeau, criando o primeiro instrumento que merecia o nome de clarinete.
A principal contribuição de Denner foi dupla:
- A Chave do Registo (ou Chave da Dozeava): Ele adicionou uma segunda chave (além da chave da nota A) colocada perto do bocal. Esta chave, quando aberta, fazia com que a coluna de ar vibrasse em harmônicos ímpares. No clarinete, ao contrário da flauta e do oboé, o primeiro sobretom (harmónico) não é a oitava, mas sim a décima segunda (uma oitava mais uma quinta). Esta chave permitiu que o instrumento alcançasse um novo e brilhante registro agudo.
- O Nome: Denner chamou este novo instrumento de Klarinett (ou Clarinetto em italiano), provavelmente por causa de seu som agudo e penetrante no registro superior, que lembrava o som da trombeta barroca, chamada clarino. O novo instrumento tinha um som mais forte e claro do que o chalumeau.
O clarinete inicial de Denner era um instrumento de duas chaves, simples, mas revolucionário.
| Característica | Chalumeau (Precursor) | Clarinete Inicial (Denner) |
|---|---|---|
| Chaves | Nenhuma ou 1 | 2 (Chave da Nota A e Chave de Registo) |
| Alcance | Uma oitava | Duas a três oitavas |
| Som (Registo Superior) | Ausente | Claro e brilhante (“Clarino”) |
| Uso | Música folclórica e de câmara simples | Orquestras e solos |
A Era Clássica: O Clarinete Ganha Proeminência
Nos seus primeiros 50 anos, o clarinete ainda estava a lutar para ser aceite na música orquestral, dominada pelas cordas, oboés e fagotes. No entanto, o instrumento de duas chaves gradualmente evoluiu para um instrumento de três, quatro e depois cinco chaves, graças a fabricantes como o inglês Thomas Stanesby Jr. e o francês Joseph Baur.
A segunda metade do século XVIII — a Era Clássica — foi um período de ouro para o desenvolvimento e aceitação do clarinete.
Os Grandes Compositores e o Clarinete
Com a melhoria da afinação e do alcance, os compositores começaram a reconhecer o potencial do clarinete:
- Johann Stamitz (1717–1757): Foi um dos primeiros compositores a usar o clarinete na orquestra e a escrever concertos para o instrumento, particularmente enquanto trabalhava na famosa Orquestra de Mannheim.
- Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791): Mozart ficou apaixonado pelo timbre do clarinete, descrevendo-o como o instrumento mais parecido com a voz humana. Ele o usou de forma proeminente na sua ópera Idomeneo e no seu sublime Concerto para Clarinete e Orquestra em Lá Maior (K. 622), escrito para o clarinetista Anton Stadler. A música de Mozart solidificou o lugar do clarinete na orquestra.
- Ludwig van Beethoven (1770–1827): Usou o clarinete extensivamente em suas sinfonias, explorando tanto seu registro suave (chalumeau) quanto seu registro brilhante (clarino).
Nesta época, era comum ter clarinetes afinados em diferentes tonalidades (como Dó, Si bemol, Lá, e até Ré) para facilitar a execução de música em várias tonalidades e lidar com a limitação de chaves do instrumento.
O Século XIX: A Revolução do Sistema de Chaves
O século XIX testemunhou a maior e mais importante transformação no design do clarinete, impulsionada pelo desejo de melhorar a afinação, a facilidade de execução e o cromatismo.
O Clarinete Müller
Em 1812, Iwan Müller (1786–1854), um clarinetista e inventor alemão radicado em Paris, introduziu o clarinete de 13 chaves. A inovação de Müller era mais do que apenas o aumento no número de chaves: ele introduziu as almofadas de couro (ou bexiga), que permitiam que as chaves fechassem os orifícios de forma hermética, algo que as antigas almofadas de feltro não conseguiam. Isso permitiu a colocação de chaves em pontos acusticamente ideais do corpo do clarinete, resultando em melhor afinação e maior facilidade de execução em todas as tonalidades.
A Invenção do Sistema Böhm (Sistema Francês)
O avanço mais significativo, e o que define o clarinete moderno, veio com o sistema de chaves desenvolvido por Hyacinthe Klosé (1808–1880), um professor do Conservatório de Paris, e o construtor de instrumentos August Buffet Jeune.
Klosé e Buffet adaptaram o revolucionário sistema de anéis móveis (ou “chaves de anel”) que o flautista e inventor Theobald Böhm havia criado para a flauta. O Sistema Böhm para clarinete (patenteado em 184introduziu
- Anéis Móveis: Pequenos anéis de metal ao redor dos orifícios que se movem em conjunto com as chaves, permitindo que um dedo opere múltiplas chaves ou que o fechamento de um orifício abra ou feche outro.
- Nova Disposição das Chaves: Uma reorganização completa dos orifícios e chaves baseada na acústica e na facilidade de digitação, não mais nas limitações dos dedos.
O Sistema Böhm, frequentemente chamado de “Sistema Francês”, rapidamente se tornou o padrão na França, Grã-Bretanha e América. Ele permitiu aos músicos tocar escalas e arpejos com uma agilidade e precisão nunca antes vistas.
O Sistema Oehler/Albert (Sistema Alemão)
Em contraste, alguns países de língua alemã e do Leste Europeu adotaram variações do sistema de Müller. Oskar Oehler (1851–1915) desenvolveu o que hoje é conhecido como Sistema Oehler (ou Sistema Alemão). Este sistema mantém uma perfuração cilíndrica mais estreita e uma palheta mais larga, resultando num som geralmente considerado mais escuro e homogêneo em toda a tessitura. Ele é o sistema dominante na Alemanha, Áustria e alguns países vizinhos.
Hoje, os clarinetes são divididos principalmente entre o Sistema Böhm (o mais comum globalmente) e o Sistema Oehler.
O Século XX: O Clarinete na Era Moderna
Com o design do instrumento relativamente estabilizado no final do século XIX e início do século XX, o clarinete continuou a ser uma força central na música.
A Orquestra e a Música Clássica
Na música sinfônica e de câmara, o clarinete assumiu papéis de destaque nas obras de compositores como Claude Debussy, Igor Stravinsky, Maurice Ravel e Béla Bartók, que exploraram a ampla gama tonal e a capacidade expressiva do instrumento.
O Clarinete no Jazz
Uma das histórias mais emocionantes do clarinete é a sua ascensão e domínio inicial no jazz. Antes do saxofone se tornar o ícone do jazz, o clarinete era o principal instrumento melódico. Artistas como Sidney Bechet e, mais notavelmente, Benny Goodman (o “Rei do Swing”) transformaram o clarinete no som definidor da Big Band e da Era do Swing nos anos 30 e 40. Goodman popularizou o instrumento para milhões de pessoas, provando a sua incrível capacidade rítmica e virtuosismo.
Embora o saxofone tenha substituído o clarinete no bebop e nos estilos subsequentes, o clarinete mantém um lugar especial em gêneros tradicionais do jazz e no revival moderno.
Clarinete Baixo e Outras Variantes
O clarinete não é apenas o familiar clarinete em Si bemol. Ao longo de sua história, uma família inteira de clarinetes surgiu para estender o alcance do som em direção ao grave e ao agudo:
- Clarinete Alto e Clarinete Baixo: Desenvolvidos para preencher o vazio entre o clarinete soprano e o fagote, o clarinete baixo, em particular, com a sua curva característica e o seu som profundo e ressonante, tornou-se um instrumento orquestral e de banda fundamental. O instrumento foi aprimorado por Adolphe Sax (inventor do saxofone) e é amplamente utilizado na música contemporânea.
- Clarinete Piccolo (ou em Mi bemol): O menor da família, com um som penetrante e agudo, usado ocasionalmente na orquestra e em bandas militares.
- Cor de Basset: Uma versão mais longa do clarinete (geralmente em Fá), ressuscitada no século XX e essencial para a execução de obras de Mozart.
O Clarinete HojeO clarinete de hoje é o produto de mais de 300 anos de refinamento. É um instrumento altamente sofisticado, capaz de extrema agilidade, afinação precisa e uma enorme variedade de cores tonais.
A fabricação de clarinetes combina tradição artesanal (a madeira de Granadilla preta ainda é a preferida para a maioria dos instrumentos de qualidade) com engenharia moderna. A palheta simples permanece como o coração do instrumento, mas os materiais sintéticos (como o bocal de borracha e as palhetas sintéticas) são cada vez mais comuns, especialmente para o estudante.
O legado do clarinete é uma prova da busca humana por expressão musical. De um simples pedaço de cana com alguns buracos a um sistema complexo de mais de 20 chaves, ele percorreu um longo caminho. O som do clarinete é o som da história musical, um eco do chalumeau antigo, temperado pelo gênio de Denner, Mozart e Goodman, e continua a inspirar músicos e ouvintes em todo o mundo.
A próxima vez que ouvir o som aveludado de um clarinete, lembre-se da sua jornada fascinante: um instrumento que nasceu da simplicidade e que, através de inovações e do amor dos compositores, conquistou um lugar insubstituível na alma da música.